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sábado, 12 de abril de 2014

Somos todxs Adelir - somos mesmo?

No dia 1º de abril, depois de todo aquele nehnhenhé de mentirar por aí... eis que a gente, da humanização do parto, recebe um soco no estômago: Adelir, cigana, 29 anos, mãe de mais dois filhos, grávida; Consciente e acompanhada por doula, empoderada; foi obrigada pela justiça, através de denúncia ao Ministério Público, a fazer uma cesárea sem seu consentimento.
Motivos? Luta de egos. A médica não aceitou que Adelir necessitasse de outra opinião, que tivesse informação, que decidisse ela mesma o que fazer.
O que alegam as autoridades e essa médiquinha?
Gravidez de risco com risco de morte para mãe e bebê por causa de:
- Gravidez com mais de 42 semanas (motivo falso para cesárea, constante na lista de falsas indicações da Dra. Melania Amorim)
- Bebê pélvico ou podálico (indicação falsa de cesárea, a menos que a gestante não se sinta segura para realizar o parto pélvico/podálico; ademais, nenhuma imagem foi mostrada no laudo para que isso fosse comprovado, o marido de Adelir, Emerson Lovari, foi impedido de assistir ao nascimento da filha, o que está em desacordo com a lei do acompanhante, válida desde 2005).

Como um bebê está em risco, se os batimentos cardíacos estão ok, o perfil biofísico fetal está ok (nota 8/8 que significa que o bebê está muito bem, obrigada), se a pressão e o líquido amniótico estão ok, se a mulher em poucas horas chegou a 9 cm de dilatação?

Muitos dizem que não é pelo fato de ser cesárea ou não, mas sim questão de autonomia sobre seu próprio corpo. Eu já digo que não é bem assim. É sim sobre ser cesárea ou não. Até quando vamos tolerar médicos indicando procedimentos cirúrgicos desnecessários, com 3 a 5 vezes mais riscos para mães e bebês? Até quando vamos ver bebês sendo retirados prematuramente do útero de suas mães? Até quando vamos tolerar que mães morram vítimas de erros médicos durante cesáreas, e isso não ser noticiado, e até quando será super normal e super divulgado em nossa mídia o número de "mortes no parto normal"? Mortes essas, causadas por assistência sucateada, assistência desatualizada e desumana.
Até quando vamos tolerar que os médicos usem de seus diplomas para participar de uma relação, um joguete de poder, entre pacientes e "doutores"?
Até quando os médicos serão adorados como deuses, detentores de todos os artifícios, segredos e saberes, bem aventurados médicos, para salvar nossas vidas?

Até quando? Até quando vamos tolerar Adelir, Ana, Maria, Gisele, Carolina, Fernanda e outras tantas mulheres fazendo relatos de violência obstétrica, de cesáreas desnecessárias? Até quando vamos tolerar mulheres escolhendo datas cabalísticas e bonitinhas para seus bebês nascerem, e depois ficarem dando graças a Deus que escolheram um hospital com UTI, porque seus bebês precisaram dela.

Eu não aguento mais isso. Meu coração se fere cada vez que vejo alguém disseminando esse tipo de discurso, de escolha falsamente informada. Meu coração se revolta com casos como o de Adelir, ao ponto de eu passar dois dias inteiros com um buraco no estômago ao mesmo tempo que tenho ânsia de vomitar.

Até quando vamos usar a desculpa de que o parto é tão violento (e muitas vezes é, num país com um índice de morte materna estúpido) para fazer uma cesárea - que nem por ser escolhida, mais rápida, é menos violenta?

Se alguém quiser me chamar de xiita - sinta-se a vontade. É como me sinto. É meu desejo que nosso índice de cesáreas caia pra 12% igual outros países (como a Holanda, por exemplo). É meu desejo que as mulheres não tenham que fazer do tema "você vai fazer cesárea ou parto normal?" uma conversa recorrente nos meios sociais - assim como não perguntamos para nossos colegas se nesse inverno ficaremos com gripe ou não (já que isso acontece, uma hora ou outra e fim - assim como uma hora ou outra o bebê terá que nascer). É meu desejo maior que os médicos não admitam marcar uma cesárea, que informem as gestantes DE VERDADE, que se atualizem, que cumpram seu dever de zelar pela nossa saúde, de nos manter informados. Que eles façam as decisões compartilhadas, com base em informação de qualidade. Que a moça que mora na periferia, que mora na favela, tenha um local digno para parir, uma equipe de respeito para atendê-la, um médico bem preparado para atender intercorrências. Que as que desejam ter um parto em casa não sejam desrespeitadas e atacadas por suas escolhas.

Infelizmente, muitos somos as Adelirs no mundo. Infelizmente, esse quadro está longe de mudar e temos tanto a fazer... Infelizmente, os médicos não são o porto seguro das grávidas - pelo menos 50% deles, que fazem nascer 50% dos bebês por via alta, pondo em risco mãe e bebê e tornando o índice de prematuridade do Brasil alarmante (12% dos bebês são prematuros no Brasil - quantos deles poderiam não ser? A maior parte deles, é no Sul e no Centro-Oeste - coincidentemente onde ocorrem os maiores índices de cesárea no país... garanto eu, que a maioria é eletiva e fora de trabalho de parto, porque isso vem se tornando quase a ordem natural das coisas no sistema privado, e contamina o sistema público).

Xiita. Eu sou xiita se isso significa se preocupar com o melhor para nossos bebês. Eu sou xiita se isso significa que desprezo práticas tenebrosas durante o nascimento de nossas crianças.
Xiita. Eu sou xiita.
Adelir. Eu não sofri a violência dela na pele, mas sofri no coração, na alma. Eu sou Adelir. Eu sou Adelir cada vez que vejo a podridão do nosso sistema obstétrico, e como os médicos conseguem tão bem perpetuar suas práticas, deixando a população acreditar neles, nas suas mentiras e na sua lábia de vender cesárea. Eu sou Adelir cada vez que penso no sistema de ensino que só sabe ensinar intervenção, mecanização, medicalização.
Desumanização.

Por isso, militantes da humanização se uniram no ato nacional de 11 de abril para que as autoridades ficassem sabendo que não vamos nos calar. Não vamos ficar quietas enquanto nossos corpos são tratados como meras embalagens de bebês.
  • Luis Henrique Sciamanna/Gazeta do Povo
Em Curitiba, nosso ato foi pequenino, mas não menos importante. 40 ou 50 pessoas - mulheres, homens, bebês. Nossos cartazes estavam ali enquanto aguardávamos pelos panfletos explicando nossa causa. Num grito mudo, uma expressão rasa perante toda a profundidade daquilo que queremos que as pessoas saibam, que as pessoas conheçam. Uma piscininha de criança perto do mar de coisas que ficam ocultas para quem não busca o tanto de informação que nós, ativistas, mulheres que querem parir de verdade, pessoas com acesso à informação.

40 ou 50 pessoas. 200 pessoas que se importam e deram "eu vou" no Facebook, para dizer que se importam e que pudessem estariam ali conosco.
Mas Curitiba tem 1,752 milhões de habitantes.
Será possível que nossa cidade esteja tão mergulhada no sistema que somente 200 pessoas se importem?
Será possível que a zona de conforto seja mesmo  tão confortável, enquanto um mar de violência passa pela nossa janela e nossos traseiros estão tão seguros (ou não) nessa zona de conforto?

A Adelir estará tão sozinha assim aqui em Curitiba?